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Cães que detectam COVID-19 e câncer: conheça dois projetos brasileiros

Eles convivem conosco há cerca de 20 mil anos e são conhecidos como “melhores amigos dos homens”. Além das demonstrações de afeto e fidelidade, os cães também têm se mostrado colaboradores extraordinários quando o assunto é saúde. Já são conhecidos, e estudados, casos de cachorros que pressentem que o tutor terá uma convulsão, nos casos de epilepsia, ou que percebem que a glicemia baixou, quando se trata de diabetes. Sem falar naqueles que indicam que o tutor pode estar com câncer.

Agora, em algumas partes do mundo, estão sendo treinados para detectar a Covid-19 em aeroportos, como o Helsinque-Vanda, na Finlândia, e o Internacional de Miami, nos Estados Unidos. Eles são adestrados para dar um alerta quando sentem o cheiro da doença. Isso é possível porque o vírus causa alterações metabólicas no organismo, o que produz compostos orgânicos voláteis (VOCs em inglês), que são excretados pela respiração e pelo suor.

Brasil & França

Pesquisadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Escola Nacional Veterinária de Alfort, na França, fazem parte do Projeto Internacional Nosaïs, desenvolvendo estudos para viabilizar a utilização de cães na identificação de pessoas infectadas pela Covid-19. Os cães são oriundos de um centro de treinamento localizado em Campo Limpo Paulista (SP). No Brasil, o projeto recebeu inicialmente fomento da Amarante do Brasil, empresa situada no Rio de Janeiro.

Quem chefia as pesquisas é o professor Anísio Francisco Soares, do Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal, biólogo de formação, com doutorado pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas de Lyon, na França, onde desenvolveu sua tese com estresse oxidativo e fisiologia celular. A equipe da UFRPE conta ainda com os professores doutores Leucio Câmara Alves, Rita de Cássia Carvalho Maia e Jeine Emanuele da Silva

“É importante lembrar que o coronavírus não tem cheiro. São os compostos voláteis que evaporam com o suor que vão exalar determinado odor, diferente do odor de quem não está contaminado”, enfatiza Soares.

Olfato superior

Quando questionado sobre o porquê de se escolher cachorros, ele explica: “Se formos datar, convivemos com cães há milhares de anos. Eles têm uma capacidade olfativa superior e conseguem identificar doenças como malária, diabetes, fibrose cística, câncer de mama e próstata. Fomos procurados pela Amarante do Brasil e, por meio dela, foi estabelecida parceria com um centro de treinamento. A xodó da equipe é a SRD Sinatra, de oito anos, os outros dois são Taruga e Takessa, ambos da raça Dobermann e com um ano e meio”.

Ele admite que se buscarmos na literatura, encontraremos outros animais que também têm esta capacidade: “Por exemplo, porcos são usados para encontrar trufas na Itália. No Sri Lanka, há os mangustos que farejam explosivos. Felinos também possuem excelente olfato, mas não são naturalmente treináveis como os cães”.

É preciso deixar claro que nem todos os cachorros são, por assim dizer, “elegíveis”. O professor explica que, no entanto, os cães podem ser criados juntos, do mesmo modo, terem a mesma capacidade, mas, ao longo do treinamento, essa capacidade vai sendo aprimorada. Além disso, um pode apresentar falta de interesse e se dispersar, isso porque há muita repetibilidade no processo. “É um treino exaustivo, os comandos são repetidos dezenas de vezes ao dia, sempre elogiando e recompensando os acertos. Se um cão naturalmente não demonstrar interesse e desobedecer ao comando, ele pode ser retirado da equipe, mas isso é exceção”.

O estudo

Soares conta que a pesquisa teve acesso ao sistema de saúde da cidade de Paudalho, que fica a 37 km de distância de Recife e tem cerca de 55 mil habitantes. Quando um morador fazia queixa de uma síndrome gripal (que poderia estar associada à Covid-19), passava automaticamente a ser monitorado pelo sistema de saúde do município. Essa informação chegava até a equipe, que, imediatamente, entrava em contato com este usuário do SUS para apresentar o projeto e, após consentimento da participação no estudo, era orientado a não tomar banho nem usar perfume nas 24 horas que antecedia a coleta do material.

No dia seguinte, os profissionais de saúde da equipe visitavam o voluntário e nele era colocado, em cada axila, um chumaço de algodão estéril limpo para coleta do suor. O material era coletado, sendo que uma amostra era guardada e outra ia para o centro de treinamento. Ao mesmo tempo, era feita outra coleta para realizar o RT-PCR, que detecta o vírus na fase aguda da doença, assegurando que se tratava de um caso positivo ou negativo para a Covid-19.

No centro de treinamento, uma pessoa entrava no ambiente e colocava o material, sendo sete negativos e um positivo. Não podia ser o treinador dos cães e ninguém sabia qual era o positivo. Eles acertaram 95%, e a equipe não entendia por que havia um erro de 5%.

“Voltamos a contactar os pacientes e era feito o sorológico para conferir os anticorpos. O interessante é que na contraprova aparecia que a pessoa havia sido infectada. Porém, quando foram colhidas as amostras, ela não estava mais na janela de detecção, por isso os resultados não batiam. Até o oitavo dia, a carga de transmissão é altíssima, mas a pessoa poderia estar assintomática no início da contaminação, de modo que o número de dias informado poderia não coincidir com o real e a janela de detecção ao RT-PCR ter passado. Os cães estavam certos”, diz orgulhoso.

As etapas

O treinamento é dividido em três fases:

  • Chumaço de algodão no centro de treinamento direto ao cão;
  • Direcionamento para ambiente hospitalar ou laboratorial, onde sentirão os cheiros característicos. O cão passa por três pessoas e identifica aquelas que têm a doença;
  • Quando vão para a vida real, atuariam em aeroportos e portos, como em outros países do mundo. Porém, aqui no Brasil não foi possível chegar a essa fase por questões financeiras.
  • “A terceira fase é mais cara e também precisamos publicar um artigo em algum periódico de renome. O Frontier se interessou e irá publicar nossa pesquisa em breve”, conta o professor.
  • Ele comenta que a adaptação dos animais costuma ser fácil e, em uma semana de treino, dois dos três cães não erraram nada, por exemplo. Para passar para a segunda etapa, são cerca de três meses de treinamentos.

Uma das intenções do estudo também é produzir compostos voláteis de forma sintética e enviar esse material para outros centros de treinamento que queiram preparar os cães. “Precisamos de um GCMSMS – aparelho de cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massa, que custa cerca de 500 mil reais. A equipe acredita no que faz, e nesta corrida internacional todos ganham. Almejamos aportes de uma empresa ou órgão de fomento para que o Brasil não saia do páreo na busca de uma resposta para a Covid-19 e toda a população saia ganhando”, conta o professor.

Entre as aplicações dos cães farejadores, além dos aeroportos, eles também podem “trabalhar” em estádios de futebol, acelerando a fila e a entrada das pessoas. O que representaria uma grande economia não só de tempo, mas de dinheiro.

*Publicado em Dr Jairo Bouer